"Pode parecer estranho e mesmo contrário às proposições precedentes que a propósito dessa arte adolescente e de evolução acelerada venhamos a falar de “essência”. Pareceria que diante das figuras sucessivas que ele assume, deveríamos nos contentar em aguardar, sem procurar defini-lo. Entretanto, seria interditado pensar que dessas premissas estaríamos no direito de tirar certas implicações permanentes, porquanto contidas no modo da apreensão cinematográfica do real? De fato, essas implicações aparecem e desaparecem como um fio na trama histórica do cinema, separando o joio do trigo, pondo em plena luz as formas aberrantes e as estruturas essenciais.
A arte sempre havia sido uma mise en scène do mundo, ou seja, uma chance dada à realidade contingente e inacabada de se locupletar, de um golpe preciso, segundo os desejos do homem. Mas esse mundo não podia ser apreendido senão por um meio termo, era preciso recriá-lo em uma matéria indireta, transpô-lo, proceder por alusões e convenções, na impossibilidade de uma possessão imediata. Linguagem, tela e cores, mármore, sonoridades, convenções teatrais eram o lugar da alquimia onde o mundo cambiava sua forma contra sua verdade. Nessas condições, a obra se media em valor absoluto independentemente de sua técnica, a renovação desta não engendrando um progresso, mas a simples exploração de um domínio novo. Dito de outro modo, a arte criando sua própria matéria não era suscetível de aperfeiçoamento, e as obras mais primitivas, por definição, igualavam as mais refinadas.
Ora, no fim do século XIX, um evento considerável vem bagunçar esses dados. O meio de captar a realidade diretamente, sem mediação, sem essas convenções cuja necessidade Valéry tinha compreendido muito bem quando se trata de recriar pelas forças do homem, fora descoberto. Um olho de vidro e uma memória de bromato de prata deram ao artista a possibilidade de recriar o mundo a partir daquilo que ele é, portanto de fornecer à beleza as armas mais agudas do verdadeiro.
O princípio do cinema como modo de apreensão é fundado sobre o registro passivo das deformações do espaço. Uma idéia que teve curso outrora queria que o cinema puro fosse mudo, que somente o jogo das imagens pudesse dar conta dessa arte que se tomava por uma espécie de pintura móvel. Isso era não enxergar duas coisas: a primeira, que o som é uma implicação necessária das premissas visuais do cinema; a segunda, que a linguagem metafórica das imagens mudas correspondia à obrigação de falar na ausência do som, e não a uma finalidade interna. Que, muito pelo contrário, uma tal deformação das aparências traía a vocação original da câmera, eis o que experimentamos hoje no espetáculo das caretas e da gesticulação desses fantasmas, e das sobre-impressões, das trucagens que conduziam a sétima arte sobre as vias de um onirismo de camelô, sem medida comum com a revelação cortante de que ele tem o poder.
Pretender que o som seja uma conseqüência previsível de A chegada de um trem à estação Ciotat não é um paradoxo[2]. O registro das aparências visuais devia criar a necessidade de uma apreensão completa do real, pelo movimento de sua dialética com o mundo: indo rumo às formas sensíveis, ele era sentido em sua separação do universo sonoro como algo obstruído no caminho, incompleto, em devir rumo a uma plenitude que se apoderaria de todas as formas. Enquanto os técnicos buscavam o procedimento que faria do cinema o que ele tendia a ser, os cineastas tentavam suplantar seu mutismo de duas maneiras bem diferentes. A primeira, ao orientar a imagem rumo à significação puramente plástica, o que levava ao monstruoso híbrido de uma arte da apreensão objetiva da aparência dedicada ao registro do falso[3] (híbrido do qual o “caligarismo” é a manifestação mais típica e mais insuportável): ao fazê-lo, o cinema perdia sua extraordinária originalidade para se pôr na esteira das artes cuja matéria não é o mundo, mas a metáfora do mundo. A segunda, ao fatiar o escoamento das imagens com intertítulos, como Griffith ou Stroheim. Notemos que essa última solução preservava a franqueza essencial de nossa arte: um filme de Griffith não é um cinema que traiu o cinema, é um cinema ao qual falta a palavra, um cinema atento a seu ser e localizado sobre a via central de seu porvir. Dessa via que passa por Griffith, Stroheim, Murnau, divergem, conforme vimos, múltiplos vieses de garagem – plástico, pictórico, trucagens surrealistas, expressionismo alemão, e todos esses filmes sofríveis, ditos de “vanguarda” ou “experimentais”, que são o último sobressalto de uma estética minada por sua contradição interna.
Assim, uma arte cuja singularidade é estar fundada sobre a técnica no sentido mecânico da palavra se acha, por esse fato, suscetível de progresso, noção incompatível com a concepção tradicional da arte. Seu primeiro princípio, o olho registrador, indica sua vocação de posicionar o homem diante do mundo, e por conseguinte sua realização ideal, que é estar dotado de sentidos tão sutis quanto os sentidos humanos[4]. Quanto menos esses sentidos estão afinados, mais a obra dá uma sensação de inacabamento e de mal-estar. É preciso ousar dizer que o cinema começa com o sonoro. Aquilo a que costumamos chamar as obras-primas do mudo são apenas as etapas de um desabrochamento; trata-se de recolocá-las em sua perspectiva balbuciante, aproximativa, de qual teria sido o gênio de seus autores. Esse gênio não está em causa, mas os meios a seu serviço. Imaginemos os Girassóis de Van Gogh desenhados com giz, ou Mozart diante de seu tam-tam. E mesmo assim, os girassóis de giz se acomodariam a esse postulado, o virariam a seu favor; Mozart inventaria uma linguagem batendo sobre a pele esticada. Mas não há linguagem a inventar com o olho irrefutável, não há convenções a estabelecer de partida; se eu planto minha câmera em um canto e os atores vêm a seu turno declamar diante dela com gestos de teatro, eu não “faço cinema”, eu transformo o espectador em um paralítico ao qual uma trupe beneficente vem fazer uma representação. Eu não o coloco em contato direto com o mundo, eu lhe ofereço o que o teatro já lhe oferecia, mas seqüestrando-lhe a motivação, o ritual, para não deixar senão o resultado e a partir daí restituir-lhe seu artifício, como se minha câmera estivesse parada diante da cena a fim de considerá-la de fora. Com efeito, o espectador sente confusamente que esse olho congelado, posto sobre essas formas, objetiva-as, despe-as de seu valor de linguagem, põe a nu sua mentira que não procede mais de uma comunicação metafórica porquanto a cumplicidade foi rompida entre o olhar e o objeto. Em outros termos, toda deformação da realidade com fins de expressão, condição das artes tradicionais, pelo fato de que ela chega ao espectador de cinema através da objetividade da câmera, se revela como mentira. O painel elizabethano onde está inscrita a palavra “Floresta” sobre a cena é a melhor imagem da floresta. Esse mesmo painel, filmado, será apenas um painel e a ausência evidente da floresta. É que o lugar ideal não é proposto diretamente ao olhar prevenido, ele o é por meio de um olhar intermediário cuja inocência e insensibilidade corroem na passagem sua vontade de expressão. A heresia que mais atrapalhou o desenvolvimento do cinema foi tomá-lo por um simples jogo de imagens suscetível de todas as combinações possíveis (exemplo: as sobre-impressões), esquecendo o ponto de partida dessas imagens: um olhar sobre o mundo sensível. Desse esquecimento resulta quase inteiramente o caráter caduco de uma grande parte da produção de antes da guerra. Cada vez que uma combinação entra em conflito com sua condição original (assim o vento que sopra do espelho em L’Âge d’Or), o imenso poder de credibilidade da fotografia se volta contra si mesmo para denunciar a inverossimilhança, multiplicado pela aparência do verdadeiro. O que poderia ser poesia nas palavras, porque a linguagem está apta a refletir as combinações ilimitadas do espírito, é apenas trucagem nos limites do olhar. Notemos que o cinema deixa atrás de si os “cinéfilos” e não se permite mais tais monstruosidades que os amadores ainda veneram. Haveria uma análise a fazer, que excederia o propósito desse estudo, das excrescências que sufocaram num certo momento uma arte intoxicada de si mesma e crendo explorar seus recursos enquanto se destacava de sua verdade profunda. Assim os ensaios de câmera subjetiva que, ao introduzir à força o espectador no espetáculo, propõem-lhe um duplo que ele não reconhece.
A tomada de consciência progressiva de sua natureza própria, somada à faculdade de aperfeiçoamento técnico na franqueza e na adequação ao real, acarreta uma conseqüência irritante: à medida que o cinema progride, as obras antigas se desvalorizam em proveito das novas. Há no público de cinema uma superstição das velhas obras-primas que se explica de diferentes modos. O primeiro, por sentimentalismo: teríamos pena de renegar suas primeiras e entusiasmantes descobertas, mesmo se o charme se escondeu diante do aprofundamento do conhecimento e da maturidade do gosto. Uma outra razão dessa superstição é que, a despeito da evidência, não admitimos a diferença o cinema e as outras artes, e imaginamos que entre um filme do período da infância e um filme adulto existe uma mesma relação que entre uma escultura primitiva e uma escultura de Houdon. Mas isso é não enxergar que de uma parte nós estamos em presença de duas eras da humanidade, duas concepções do mundo se exprimindo através de meios invariáveis, enquanto na outra temos o mesmo homem, antes paralisado, mudo, atingindo perturbações visuais, depois em possessão de todas as suas faculdades. Enfim, uma terceira razão é que o cinema mudo oferece mais prestígio ao neófito, é mais facilmente acessível pela exterioridade de seu estetismo. Podemos entender, no curso da projeção desses filmes de papel timbrado e de sombras chinesas, donde um bom exemplo é Marcel l’Herbier, espectadores suspirarem após os felizes tempos de um cinema repleto de maravilhas para os olhos. Não se pode debochar demais. Nós todos fomos mais ou menos esse espectador de alma simples. O inquietante não é começar por lá, mas lá permanecer, estagnação onde se compraz a maior parte dos “cinéfilos”, raça estranha, pastora, dócil nos modos, em divórcio flagrante com o cinema no reconhecimento de sua pureza e de suas aproximações do ponto de perfeição."
2] "Esse parágrafo que eu acreditava dever defender da imprecisão foi escrito quando eu tinha achado sua melhor justificação em um artigo de André Bazin, compilado em Qu’est-ce que le cinéma? e intitulado “O Mito do Cinema Total”. Citemos: “Tudo me parece ocorrer como se devêssemos inverter aqui a causalidade histórica que vai da infraestrutura econômica às superestruturas ideológicas e considerar as descobertas técnicas fundamentais como acidentes felizes e favoráveis, mas essencialmente secundários em relação à idéia preliminar dos inventores. O cinema é um fenômeno idealista. A idéia a partir da qual os homens o fizeram existia toda pronta em seu cérebro, como no céu platoniano, e o que nos atinge é bem mais a resistência tenaz da matéria à idéia do que as sugestões da técnica à imaginação do explorador”. E mais adiante: “Se as origens de uma arte deixam perceber alguma coisa de sua essência, podemos considerar os cinemas mudo e sonoro como as etapas de um desenvolvimento técnico que realiza pouco a pouco o mito original dos exploradores. Compreende-se, nessa perspectiva, que seja absurdo tomar o cinema mudo por uma espécie de perfeição primitiva da qual o realismo do som e da cor progressivamente se distanciaria”.
[3] Cf. a definição de Valéry, contemporânea dessa época: “O cinema é a arte de fazer o falso com o verdadeiro”.
[4] "Importância da fotografia: de sua qualidade depende em parte a sensação do volume espacial, o grão da luz, os jogos tênues da epiderme."
Texto de Michel Mourlet, tradução de Carlos Oliveira.
terça-feira, 12 de maio de 2009
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